Designa-se como pós-moderna a produção cultural nascida na era
pós-industrial, genericamente engolfada pela lógica do capitalismo
tardio e situada no contexto das sociedades altamente tecnológicas do
Ocidente. Verificou-se que, após os anos de 1950, manifestações como a
arquitetura, a dança, a música e o cinema passaram a fornecer
procedimentos de linguagem para as incontáveis novas mídias surgidas
com a revolução cibernética, propiciando um amálgama de novos e
inusitados formatos expressivos. Tais fatores engendraram uma
pluralidade de manifestações junto à área artístico-cultural,
dificultando as generalizações ou agrupamentos em séries; sugerindo o
desenvolvimento de novas formas de conhecimento, de vida e
comportamento, em que a questão dos gêneros afirmou-se e transformou-se
em motor de (novas) proposições. Como resultante, observamos uma
cultura que manifesta caráter antitotalitário e não-hegemônico, nos
antípodas das posturas que demarcaram o advento da modernidade. As
dimensões social, cultural, industrial, arquitetural, técnica, de
engenharia e sistemas operacionais surgem fundidas, consubstanciando
corporações, holdings e tradings como seus mais elo quentes paradigmas
de manifestação.
Neste ambiente sociocultural ultradesenvolvido, novos procedimentos de linguagem marcam presença, estreitando o antigo fosso entre uma cultura erudita e outra de massa, tais como a intertextualidade, a citação, a paródia*, a ironia, o humor, o entretenimento, a desconstrução de todos os discursos instituídos. Apontam eles para a falência das meganarrativas do passado (o que fará com que sejam redimensionadas as ciências humanas), recobrindo todas as estruturas com a pátina do cotidiano, provocando descrença nas utopias que impulsionaram o advento da modernidade. Do ponto de vista da recepção, opera-se uma revalorização do espectador, abordado através de uma retórica que privilegia a nova sensibilidade - aberta, provisória, capaz de deslocamento rápido entre múltiplos estímulos simultâneos.
As artes cênicas assistirão, a partir de 1950, ao surgimento do happening: e da performance* como procedimentos modelares destas novas configurações. A atitude experimental que lhes é subjacente ganhará impulso, apontando o teor vanguardista com que surgiram. Insuflarão grupos como o Living Theatre, o Open-Theatre ou o Performing Group, nos EUA; assim como, do outro lado do Atlântico, fornecerão os procedimentos de base mobilizados por Tadeusz KANTOR e [erzi GROTOVSKI. O caráter gestual inerente à action painting e à body-art muito em breve contaminará a dança, e esta, as demais manifestações cênicas, conformando novos modelos, apoios e técnicas para a abordagem da interpretação. O resultado desses processos será o redimensionamento da noção de representação, que trabalha agora com fenômenos de mestiçagens e hibridizações, sem fronteiras demarcadas: é o work in progress em franco desenvolvimento.
Uma dramaturgia que se assume fora do textocentrismo nasce com as experiências de criação coletiva" privilegiadas por inúmeras equipes artísticas. O pensamento de ARTAUD ressurge com ímpeto ao longo da década de 1960, assim como as práticas ritualísticas, a ensejarem um teatro performático como preconizado por SCHECHNER e CHAIKIN. O teatro de imagens ganhará relevo com Robert WILSON e Richard FOREMAN, depois de 1970.
Macunaíma, espetáculo de ANTUNES FILHO de 1978, pode ser considerado o marco instaura-
dor da pós-modernidade no Brasil. Associando códigos da intertextualidade, da paródia, da ironia, do humor, soube preencher o palco nu com signos impactantes, a oferecerem uma nova face ao homem brasileiro, assim como a instauração de um renovado padrão de teatralidade. Junto ao Centro de Pesquisa Teatral CPT, ANTUNES dedicou-se a criações de fôlego: Nelson Rodrigues, o Eterno Retorno (1980), Romeu e [ulieta (1984), Paraíso Zona Norte (1989), Trono de Sangue-Macbeth (1992), Vereda da Salvação (1993).
Em 1982, inúmeros artistas foram reunidos em "14 Noites de Performances", num megaevento promovido pelo SESC-SP, e pela FUNARTE, cuja função era disseminar essas novas experiências em curso. O grupo Ponkã estreia Aponkâlipse em 1984, inspirado no I Ching e no livro bíblico de João, colocando em destaque as imagens terminais do século da cibernética. O Próximo Capítulo, coordenado por Luiz Roberto GALIZIA, empregava a performance como motor de sua estrutura, que admitia um convidado a cada noite. Pássaro do Poente, espetáculo de Márcio AURÉLIO, de 1987, fundia uma tradicional lenda nipônica com elementos da Commedia dell'Arte, bonecos de kyõgen e paródia sertaneja, teatro nô e kabuki, para narrar uma história de trás para frente, levando o Ponkã à máxima miscigenação cultural, como era seu propósito original.
O multiculturalismo*, em seu corolário mais amplo, encontra-se na fundação do Bando de Teatro Olodum, capitaneado por Márcio MEIRELES, em Salvador, 1991, com o espetáculo Essa É Nossa Praia. A cultura do Pelourinho, entrecruzamento do arcaico e do moderno, do negro pobre brasileiro e do turista estrangeiro, das contradições de classe e raça, ganhou expressão nacional com este primeiro elenco formado exclusivamente por negros que fundiram o teatro à dança, à música, ao ritmo e à carnavalização, sintetizando a cultura baiana contemporânea.
Outra dimensão pós-moderna encontra-se no trabalho dos intérpretes. Denise STOKLOS inaugurou o teatro essencial: com Um Orgasmo Adulto Escapa do Zoológico, em 1983. Desde então apresentou inúmeras criações, com destaque Para Mary Stuart (1987), Casa (1989), Um Fax para Cristóvão Colombo (1992). O Lume, criado por Luís Otávio BURNIER em Campinas, enveredou pelos métodos difundidos por Eugenio BARBA, chegando à mimese corpórea, em realizações como Kibilin o Cão da Divindade, Cravo, Lírio e Rosa e Café com Queijo. A ISTA (International School ofTheatre Antropology), fundada por BARBA para difundir seus ensinamentos, inicia suas atividades em 1980, em Bonn. Após sessões em diversos países, aporta em Londrina em 1994, consolidando este inusual enquadramento do trabalho do ator, através de uma estratégia autodefinida como terceiro teatro. Maura BAIOCCHI tornou-se uma empenhada difusora do butô entre nós, após as instigantes visitas de Kazuo OHNO (1980) e Sankai JUKU (1981), em realizações radicais como Tanz-Butoh (1986).
Oriundo das artes plásticas e da música, o grupo XPTO estreia, em 1984, Buster Keaton e a Infecção Sentimental, revitalizando a centenária arte dos bonecos' e das formas animadas", Com Kronos (1987) e Coquetel Clown (1989) levam o gênero a um máximo de desenvolvimento, abrindo as portas para outros artistas da mesma linhagem, como o Pia Fraus e o Manhas e Manias, estes mais próximos da entonação circense. Rodrigo MATEUS alcança desenvoltura junto ao teatro físico*, afirmando e ampliando o repertório expressivo desta tendência, francamente distante da representação tradicional.
A encenação conhece insuspeitos e instigantes desafios, co~o o proposto por Gerald THOMAS em Carmem com Filtro (1986) Eletra Com Creta (1986), Trilogia Kafka (1988) e Mattogrosso (1989), que abusivamente valeu-se da paródia, da intertextualidade, da citação como alavancas de uma dicção que objetivava a auto exibição, em seguida contextualizada como a de um encenador" de si mesmo. Neste mesmo influxo, vale lembrar o teor fortemente autoral das criações do carioca Márcio VIANNA, como Marat, Marat (1988), O Caso dos Irmãos Feininger, Coleção de Bonecas, O Circo da Solidão, em que explorou ao paroxismo a desvinculação entre intenção e gesto no trabalho de seus intérpretes, em agudas pesquisas sobre as convenções da cena. O apelo autoral também está presente no trabalho de Bia LESSA: Exercício n. 1 (1987), Orlando (1989), Cartas Portuguesas (1991) e Viagem ao Centro da Terra (1993). Renato COHEN surpreendeu a todos, em 1986, com Espelho Vivo, mergulhando no universo figural de René MAGRITTE, bem urdido emprego da performance e do teatro-imagem. Sturm und Drang/Tempestade e Ímpeto (1991) revisitou matrizes do pré-romantismo alemão fazendo deambular pelo Parque Modernista uma série de figuras em busca da essência da poesia. Em 1995, Renato COHEN volta-se para a vanguarda russa, redescobrindo Vitória sobre o Sol, espetáculo embasado pelo butô. Mais radical foi seu trabalho Ka-Poética de Vélimir Khlébnikov, em que o emprego da linguagem zaún possibilitou repetidos exercícios em torno da pura sonoridade. Tais repetições, uma das matrizes identificadas com o minimalismo, já estavam presentes em Você Vai Ver o que Você Vai Ver (1986), de Gabriel VILLELA, que recontava, em estilos diversos, quatorzevezes o mesmo enredo. Esse diretor mineiro criou um Romeu e [ulieta minimalista com o grupo Galpão, em 1991, assim como A Rua da Amargura, apelando para uma revisão estilística da Paixão de Cristo que tinha na paródia, no uso das alegorias' e no perfil neobarroco de seu traçado as marcas da pós-modernidade.
O Centro para Construção e Demolição do Espetáculo surgiu em 1988, por iniciativa de Aderbal FREIRE - FILHO que levou ao palco, em sua íntegra e sem adaptação", o romance A Mulher Carioca aos 22 Anos. Em anos subsequentes, o encenador evocará a história do país, revivendo episódios em torno de Getúlio VARGAS e TIRADENTES. Em 2003 voltará ao antigo formato com O que Diz Molero, radicalizando a narratividade do romance.
Em 1991, José Celso Martinez CORRÊA volta aos palcos com As Boas, lançando dois anos após Ham-Iet, a primeira produção do novo Teatro Oficina, remodelado como uma rua cultural. Mistérios Gozozos (1995), As Bacantes e Para Dar um Basta no Iuizo de Deus (1996), Ela (1997) e Cacilda! (1998) constituíram-se em momentos de forte extração dionisíaca, novos apelos ao rito e à teatralidade prenhe de erotismo, festa, desregramento. Os Sertões, adaptado de Euc1ides da CUNHA, conheceu três partes, apresentadas entre 2000 e 2004. Esta vertente perseguida pelo Oficina, que entrecruza vida e arte, já havia arrebatado outros adeptos, como o Terreira da Tribo, de Porto Alegre, através de criações como Ostal (1987), Antígona (1990), Missa para Atores e Público sobre a Paixão e o Nascimento do dr. Fausto de Acordo com o Espírito de nosso Tempo (1994), A Morte e a Donzela (1997) e Kassandra in Process (2001).
A exploração de novos espaços cênicos e a eleição de lugares da memória coletiva como marcos simbólicos da cidade ajudaram o Teatro da Vertigem, em São Paulo, a delinear seu projeto artístico, efetivado com as montagens de o Paraíso Perdido (1992), ambientado na igreja de Santa lfigênia; O Livro de Jó (1995), que ocupou os três andares do hospital Umberto I, e Apocalipse 1, 11 (2000), sediado no presídio do Hipódromo. Antônio ARAÚJO distingue-se como um encenador que busca no sagrado um apoio decisivo, levando seu elenco a contundentes confrontos para viver o hiper-realismo de cenas sempre rentes ao paroxismo. Em trilha assemelhada, Ricardo KARMAN investe em novos espaços, como a exploração de um túnel escavado no coração do Parque Ibirapuera, para a montagem de Viagem ao Centro da Terra (1992), na qual a visão de seres mitológicos e heróis de diversas epopeias coagulavam a paisagem. Em 1996, cria A Grande Viagem de Merlim, levando o espepador a percorrer um longo percurso dentro de'um ônibus multimídia que o despejava num aterro sanitário na periferia de São Paulo seguindo, na sequência, para as ruínas do Teatro Polytheama, em [undiaí, culminando a excursão à beira de um lago na Serra do Iapí. Nesse teatro de estações, não apenas a tradição medieval ressurge como experiência arcaica como, em igual medida, a parafernália eletroeletrônica se faz triunfante, numa justaposição de ingredientes que almeja arrebatar o espectador em todos seus sentidos.
Dois encenadores paranaenses despontaram nos últimos anos: Felipe HIRSH obteve consagração nacional com A Vida É Cheia de Som e Fúria (2000) e, especialmente, Os Solitários (2002), voltando-se para os fenômenos da memória e as interconexões psíquicas que ensejam a identidade dos indivíduos. Fernando KINAS construiu um espetáculo radical em Carta aos Atores, tornando quase inexistente o intervalo entre vida real e representação (2002).
Perpétua, Opus Profundis e Desembestai! constituem uma trilogia na qual Dionísio NETO explorou, com desenvoltura, recursos da performance, do rock, da dança, da intertextualidade, da paródia e da citação, em 1996. Com a Cia. Cachorra criou, em 2000, novas realizações: Corações Partidos e Contemplação de Horizontes, O Dia Mais Feliz de sua Vida e A Milagrosa História da Imagem que Perdeu o seu Herói, exacerbando procedimentos multimídia e fazendo desfilar personagens da cultura junkie das megalópoles. A marginalidade, a vida boêmia nos grandes centros de diversões, a subcultura, os mitos da sociedade de consumo estão presentes nos espetáculos de Mário BORTOLOTTO, ora como autor ora como encenador, cujas marcas distintivas estão no acabamento precário, nas montagens sujas e mal ajarnbradas, através de incompletudes que enfatizam a falta de artesanato como uma chancela da arte contemporânea.
Personagens periféricas assumem a cena nas obras de dramaturgos do final do século, revelando textos irados e comprometidos com um novo .enquadramento socioestético. São os jovens sem perspectivas de Budro (1994) e Atos e Omissões (1995), de Bosco BRASIL; os marginais de Um Céu de Estrelas, de Fernando BONASSI (1996); os estudantes criminosos de Vermuth (1998), os alternativos de A Boa (1999) e os militantes de MSTesão (2001), de Airnar LABAKI. A que se somam os aspirantes a atores de A Máquina (2000), de João FALCÃO, os degradados sociais de Babilônia (2002), de Reinaldo MAlA, todos eles compondo facetas do Brasil desigual, dividido, construído sobre exclusões sociais. Evidenciam aspectos de amargura, sofrimento e abandono, a maré montante que coloca em cheque o sistema econômico globalizado. (EM)
(GUINSBURG, J., FARIA, João Roberto e LIMA, Mariângela Alves de (Coord.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva: Edições SESC SP, 2009, p. 275 - 278)
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