Gilvan Dockhorn
No primeiro dia de abril de 1964, o popular dia dos bobos deu outras caras ao Brasil, país que inaugurou uma série
de golpes de Estado que se tornaram comuns na América Latina nos anos
subseqüentes.
O golpe civil-militar de 1964 seguia
a lógica de autoritarismo, violência e repressão que caracterizou as relações
político sociais do país desde sua época colonial. Na política, a exceção foi
função de normalização. Ao longo da metade final do século XX tornaram-se
aceitáveis medidas salvacionistas para “evitar custos maiores”. Mais do que a
saída de uma crise conjuntural, a coalizão golpista de 64 afirmava-se portadora
de um projeto histórico que, embora não sendo a única expressão do bloco
dominante, foi endossado pelo conjunto das frações deste.
Esse projeto propunha a transformação
da sociedade com uma reestruturação interna e reinserção no sistema econômico
mundial. O procedimento político para tal foi o controle do dissenso garantindo
previsibilidade política, algo que o regime democrático não possibilitava, a
não ser com manipulações ou fraudes.
O processo que levou à deposição de
João Goulart (depois da frustrada tentativa em 1961) teve êxito em razão da
ampla coalizão formada, a qual reuniu segmentos de praticamente todos os
setores sociais, do arcaico ao moderno, do conservador ao progressista. A
dimensão da onda repressiva nos primeiros momentos do regime aponta que não
houve esterilização dos enfrentamentos ou paralisia da sociedade. A repressão através
do terrorismo de Estado foi sendo aprimorada ao longo do tempo, afinal,
historicamente a relação do Estado com setores menos privilegiados esteve entre
o tributo e a violência. Se falta saúde, educação, acesso à cultura, desporto,
habitação, sobram degredo, tarifas e cadeia, algo que remonta ao século XVI.
Nos anos 60, a elite brasileira era
um verdadeiro mosaico de velhos e novos ricos, camadas médias decadentes e
emergentes, progressistas, fascistas e conservadores, que comungava da
convicção de que as estruturas do Estado existiam para servi-los. Por isso a
reunião em torno do inimigo comum foi facilitada na medida em que percebiam que
suas benesses estariam em risco.
Tamanha convergência de interesses,
com setores, correntes e frações tão díspares, foi a força necessária no
acolhimento do regime autoritário. O colapso das estruturas e instituições do
Estado e o desejo de previsibilidade política (estabilidade) levaram segmentos
com interesses distintos a encampar ou a anuir o golpe e as primeiras ações dos
golpistas no poder.
Senhores a serviço de Deus, senhoras
a serviço do lar, senhores de terno, senhores de botas, chapéu e rebenque,
senhores democratas, senhores conservadores, senhores das letras, senhores dos
lotes, senhores da informação, senhores de farda, senhores do espetáculo,
senhoras de rosário em punho, castos, celibatos, devassos e profanos, enfim, o
golpe de 1964 somente foi possível na medida em que agregou uma série de
interesses imediatos. Grande parte da sociedade desejou, acolheu ou se mostrou
indiferente à intervenção.
Ao
se rememorar os tristes idos de março/abril de 1964, endossamos a luta para que
nos reencontremos com a memória e com a justiça pois a Lei da Anistia (aprovada
em agosto de 1979) se revelou um instituto de apaziguamento, de clemência e de
esquecimento, ratificando em lei os termos da conciliação nacional em troca da
verdade, da História e da justiça.
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Gilvan Veiga Dockhorn
Secretário Geral CNC
Cineclube Abelin nas Nuvens - Silveira Martins/RS
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