Entrevista com Orlângelo Leal* - Matéria publicada no Caderno3/ Diário do Nordeste - 14.07.2013
´Na falta de dinheiro, se adquire expertise para tudo”
Integrante do Dona Zefinha fala sobre a escrita de textos para a rua e as conquistas do estilo
Quando começou a escrever textos para teatro de rua?
Na verdade, escrevo textos dramatúrgicos de todo tipo, além de roteiros para televisão e teatro físico. Escrevo desde que comecei a compor e a fazer teatro, em meados da década de 1990. Agora, em 1998, quando participávamos de um projeto de combate à AIDS e DST’s, período em que se difundiu o famoso texto de José Mapurunga, “O Auto da Camisinha”, foi publicada uma peça minha, chamada “A chegada de Marcolino no Purgatório” e pode-se dizer que essa foi a minha estreia com o teatro de rua. Esse espetáculo acabou recebendo várias montagens em todo o Brasil e depois segui escrevendo.
“Quando se monta o texto, já se prepara o ator para isso, já se conduz a cena para que aconteça esse pingue-pongue saudável entre o grupo e o povo”, afirma Orlângelo Leal, sobre o improviso no trabalho do ator de teatro de rua
Há diferença em escrever para teatro de palco e para a rua? Se sim, quais seriam as distinções?
Na verdade, em geral, cada grupo vai determinar o modo como vai querer montar seu trabalho. Então esse acaba sendo um processo muito coletivo. Leva-se o grupo para o texto e ele decide. O que acontece é que, quando você muda o lugar, tem que encontrar um formato adequado para o ambiente. Na minha escrita, fui buscar em vários lugares informações para fazer teatro de rua, como encontrar uma linguagem que se adequasse ao ambiente público. Algumas das minhas influências foram os diálogos dos reisados ou mesmo os palhaços de circo do Nordeste. Outro elemento dessa dramaturgia é o mamulengo, a arte dos bonecos e também o pregão dos camelôs e dos artistas de rua. São esses os elementos que inflenciam essa escrita para o teatro de rua no Nordeste, especificamente. Também recebemos muita herança da Europa medieval, dentro da dramaturgia da oralidade, da brincadeira, herdamos isso de Molière e da commedia dell'arte. Acho que, diferente do teatro de palco, essa estética tem uma velocidade na língua, uma clareza nas frases, o uso de frases curtas, bem populares. Não que isso não possa existir no palco e, muito menos, que não se possa fazer diferente na rua. Acontece que é o mais tradicional, entende? O teatro de rua das grandes capitais, por exemplo, são mais urbanos e se relacionam com temas urbanos, um tanto mais políticos. Já esse teatro das manifestações interioranas tem uma relação muito mítica, ligada ao realismo fantástico, com a comicidade e os nossos jogos dramáticos.
Como a dramaturgia de rua lida com os improvisos? Eles são um elemento do texto?
Certamente, é uma das ferramentas que utilizamos. Para isso, o dramaturgo tem que deixar esse espaço aberto para que os atores possam se relacionar com a plateia, que é altamente atuante, ela participa, quer que aconteça do jeito que ela espera, quer se divertir. Quando se monta o texto, já se prepara o ator para isso, já se conduz a cena para que aconteça esse pingue-pongue saudável entre o grupo e o povo. Agora, isso tem sido uma tendência da arte contemporânea em geral, seja na música ou nas artes plásticas, por exemplos, vê-se muitos artistas investindo nessa interação com o público. O teatro de Augusto Boal, por exemplo, põe o espectador para decidir. Ele tem voz, ele atua, ele decide. Aqui no Nordeste tem essa coisa da brincadeira. Eu sou suspeito para falar por que sou um dos discípulos do palhaço Colorau, me considero um aluno dele, sempre que podia, ia vê-lo na Praça José de Alencar e no Theatro. A cada instante ele deixava essa situação pro espectador contribuir.
Diz-se que um dos prejuízos à arte mambembe é a falta de registro e compilação dos textos. Concorda?
Isso é realmente escasso, não existe registro. Estive há poucos dias no Festival dos Inhamuns e, conversando com o palhaço Biribinha, ele me dizia que estava com um projeto pra escrever as reprises, entradas, gages, que costuma usar nos seus números. Ele tem um acervo gigante na mente e pretende escrever isso antes de morrer, senão vai ficar perdido. Essa questão tem a ver com a nossa tradição de literatura oral, os palhaços mais antigos, ainda adaptam piadas da primeira metade do século XX, que acabam sendo reinventadas, mas nunca registradas. Isso acontece também com o teatro de palco contemporâneo. Alguns grupos até conseguem publicar livros e contar suas historias, outros não, não têm essa relação com o registro. Assim, muitas montagens se perdem ou caem no esquecimento.
Você concorda que haja uma certa desvalorização desse tipo de teatro?
Há uma certa desvalorização, sim, mas, no Brasil. Amir Haddad, por exemplo, é um dos maiores expoentes em teatro de rua do Brasil. Na década de 60 ou 70, quando ele deixou os palcos para fazer teatro de rua, disseram que ele estava doido. Ele foi um dos primeiros caras que foram pra rua e a própria classe não compreendeu. Ao mesmo tempo, no resto da América Latina existem festivais, teorias, encenadores, pesquisadores, todos voltados para esse tipo de teatro, mas principalmente por que eles não tem apoio governamental, então tem que fazer por si mesmos. No Brasil, essa relação ainda é um pouco melhor, porque já se criam editais. Falo isso porque, no Brasil, é difícil contar apenas com o público. Em outros países, existe uma cultura de pagar por espetáculos. As pessoas entendem o valor daquilo, mesmo sendo na rua. O pessoal do “Patos Mojados”, da Argentina, com os quais estava conversando no Festival dos Inhamuns, disse que em uma passada de chapéu pelo público chegam a tirar 600 pesos. Aqui, o Colorau passa o chapéu a cada cinco minutos, as pessoas dão R$ 2 reais, R$ 1. Lá, o público começa a contribuir a partir de 20 pesos. Creio que os editais já foram uma grande conquista de classe. Hoje já existe um edital de artes cênicas de rua, lançado pelo Ministério da Cultura. Mas enquanto um edital de teatro de palco tem R$ 50 mil, um de rua tem R$ 20 mil. E as pessoas não pensam que temos elencos maiores, em geral, que precisamos sempre deslocar todas as nossas estruturas... Acho que, no fim das contas, a arte de rua ainda está em processo. O mais importante é que ela está sim difundida em todo o País. Temos grupos atuantes em todo o território brasileiro, que assinam seus figurinos, que possuem estética própria. Isso é maravilhoso.
Sobre essa questão da estética própria, é verdade que a existência de dramaturgos dentro da própria trupe ou muito aproximados dela é uma marca do estilo?
Isso é muito recorrente no Ceará e não apenas no teatro de rua, sabe? Aqui temos muito mais teatros de grupo do que de elenco. No de elenco, você tem uma companhia, só com atores, e contrata um produtor, um diretor, um dramaturgo, monta-se o texto, terminou a temporada, vai cada um para o seu lado. No Ceará, existe muito mais teatro de grupo e isso gera uma comunhão. E as pessoas se reúnem principalmente por que não tem dinheiro para pagar outras pessoas para aquelas funções. Assim, vão surgindo pessoas com capacidades natas dentro do próprio grupo. O carinha ali já escreve, então ele vai se tornando o dramaturgo. Foi o meu caso, comecei a escrever por falta de acervo literário, não tinha internet naquela época e a biblioteca da cidade era muito fraca, nossa alternativa foi escrever nossos próprios textos. Outro exemplo: tem ali no grupo uma pessoa que sabe costurar? Logo ela vai se tornar a figurinista. Daqui a pouco, tem um camarada que mexe e ajeita o cabo do som. Pronto! Na falta de dinheiro e na necessidade, vai-se adquirindo expertise para tudo.
*dramaturgo e integrante do grupo dona zefinha
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