Não é preciso muito dinheiro para produzir shows na Casa Fora do Eixo
por Raquel Freire Zangrandi
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Na virada do ano, Dríade Aguiar, uma morena lépida de 20 anos, ligou para os pais em Cuiabá e avisou que não voltaria. Tinha ido encontrar amigos em São Paulo e decidira ficar. Viveria num sobrado de dois andares no bairro da Liberdade, junto com outros moradores da Casa Fora do Eixo, que em janeiro inaugurou ali sua base nacional. A mãe curtiu; o pai, não.
A nova casa de Dríade Aguiar é o quartel-general para a produção de projetos culturais de todos os naipes. Ali são arquitetados shows de bandas independentes, mostras de cinema e vídeo, lançamentos de livros, turnês de trupes teatrais, seminários e oficinas. A casa tem uma população flutuante de moradores fixos – atualmente são dezessete –, mas serve também de abrigo para artistas, produtores e simpatizantes de passagem por São Paulo. A lotação máxima é de 45 pessoas.
No QG paulistano, o ambiente é o de uma república de estudantes onde se acorda tarde e se trabalha até de madrugada, sete dias por semana. As salas estão sempre cheias de moradores e colaboradores que discutem animadamente. Em comum, têm a idade na virada dos 20, o uso orgânico da internet, a paixão pelo que fazem – e a falta de grana. “A gente vive confortavelmente no vermelho”, explicou Dríade, enquanto tomava um copo de Toddy para começar o dia. “Não dá para ser transgressor trabalhando só no azul.”
O relógio da cozinha marcava 11 horas quando os primeiros moradores desceram para o café. O casarão tem cinco salas, dois quartos de casal e quatro de solteiro, uma cozinha grande, cinco banheiros, quintal, lavanderia, garagem e um lugar chamado pub, que serve para shows e transmissões pela internet. Nos fundos, há um anexo com quarto de hóspedes.
O ciclo completo de produção de um show pode ser resolvido ali, em volta de uma mesa cheia de laptops: Ávner Andrade, de Goiás, negocia a apresentação das bandas e resolve problemas logísticos. A paulista Isis Maria se encarrega de passagens e hospedagem. João Paulo Lopes, de Juiz de Fora, cria o cartaz de divulgação. Camila Cortielha, de Belo Horizonte, cuida dos contatos com a imprensa. Dríade, por fim, lida com a gráfica e alardeia o evento nas redes sociais.
Vige o sistema do socialismo numa só casa. Nenhum morador anda com cartão bancário pessoal. Fica tudo guardado no armário de madeira que serve como caixa coletivo, e todos sabem a senha de todos. Entradas e saídas de dinheiro são registradas no “livro-caixa off-line”, um caderno espiral pautado. Ninguém saca dinheiro para uso pessoal sem que o grupo autorize.
Quando vence uma conta, o encarregado do caixa checa os extratos bancários. Aquele que tiver maior saldo será usado para quitá-la. Ninguém ganha salário, mas recebe o básico para viver: casa, comida e internet sem fio. Quando Dríade precisou comprar sapatos, há dois meses, comunicou ao banco e anotou a despesa. Para quem pernoita, a diária custa o equivalente a 5,50 reais, refeições incluídas. Mas os moradores preferem receber em serviços.
O funcionamento tem também suas regras de etiqueta – homens não podem circular sem camisa e cada um se encarrega de afazeres domésticos. Os moradores recorrem a termos grandiloquentes para se referir a coisas triviais. Ficar uns dias longe do computador é “fazer imersão off-line”; poder descentralizado e falta de hierarquia é “horizontalidade”; espaço de troca de ideias é “zona autônoma temporária”. O léxico básico também incorpora expressões do mundo corporativo e político, como fomento, gestão, sustentabilidade e articulação – tudo na maior sinergia.
No andar de cima, há um armário coletivo. Moradores e visitantes podem utilizar as roupas disponíveis, mas devem devolvê-las limpas e inteiras. Fazem uso comum de lençóis, xampu, toalhas e meias, e são de uma geração que aboliu o ferro de passar.
A lotação da casa faz a alegria do padeiro mais próximo. Consomem-se, por baixo, 60 pães e 32 litros de refrigerante a cada 24 horas. As idas semanais ao supermercado incluem pelo menos 1 quilo de achocolatado e 64 rolos de papel higiênico, e são planejadas de acordo com o gosto da maioria. Quem é fã de Sucrilhos, como Dríade, tem que se contentar com granola. “A bancada do cereal é mais forte”, lamentou, resignada.
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