O ator e diretor teatral Fernado Piancó foi o primeiro convidado da Dona Zefinha para encenar a leitura dramática do mês de Maio. No artigo a seguir comenta suas impressões e pensamentos sobre a tarde em Itapipoca
Dona Zefinha e os Seis Climas
Itapipoca (do tupi-guarani “pedra arrebentada”), na região norte do estado do Ceará, é conhecida como a cidade dos três climas por haver em seu território praias, serras e sertão.
Tem um comércio bastante diversificado fazendo com que seja um centro regional de compras e negócios. O município produz, entre outros, algodão, feijão, leite, queijo, peixes, crustáceos e o turismo que traz vários visitantes à cidade, devido às atrações naturais, arqueológicas e arquitetônicas. Produz, também, arte e cultura das boas.
A recém inaugurada “Casa de Teatro Dona Zefinha” um local de sonhos e realizações e que servirá de base para as produções musicais e cênicas do grupo Dona Zefinha, passa a fazer parte desse rol de produção que parece um “pipocar” de pedras de arte e cultura prá todo lado.
A casa conta com mais de 200 metros quadrados e está situada no bairro Jenipapo. Em seu espaço abriga uma sala de música, ateliê de criação e restauro de figurinos e adereços, sala de pesquisa, hospedagem solidária, sala de produção e sala de cênicas.
A idéia é que na casa desenvolvam-se, além das atividades de ensaios e de produção comercial do grupo, ações formativas e compartilhamento de idéias e pensamentos sobre o universo da arte, beneficiando artistas e a comunidade de Itapipoca, da região e do Ceará e pretende, através de parcerias, alçar vôos mais altos para contribuir, ainda mais, com o desenvolvimento da arte e da cultura no nosso país.
Estive na “Casa”, no dia 19 de maio, atendendo convite de Orlângelo Leal para participar, como facilitador, de um workshop prático visando à realização de uma leitura viva de um texto teatral.
Escolhi, de comum acordo com o Orlângelo, o texto de Márcia Frederico “O Médico Camponês ou a Princesa Engasgada”, uma farsa saborosa inspirada em conto da tradição oral medieval.
A casa realizará um programa de dez leituras dramáticas, uma a cada mês, de textos de comédia e, convidando, a cada uma um diretor que realizará um workshop seguido de leitura.
Cheguei à Itapipoca por volta das 10 horas da manhã da quinta-feira e fui direto para a casa conduzido pelo Paulo Orlando. Ao adentrar na casa fiquei deveras encantado. Sim, fiquei num estado de encantamento. Vi uma casa montada e pronta para receber sonhos, criações e realizações.
Vi a exposição, trajetória do grupo, que recebe o visitante e estende-se pelo corredor da casa. Depois espiei cada cômodo e ouvia sobre as suas funções. E por fim o quintal e a cisterna, onde tomamos um café e palestramos.
De repente estávamos Orlângelo, Joélia, Paulo e eu, dando uma rápida arrumação no espaço onde seria realizado o encontro. Isso sob os olhares do Artur, filho do casal, que a todo o momento mostrava uma “pequena” realização: um som, uma escrita de seu nome na lousa, uma pergunta instigante vinda de uma criança de cinco anos.
Pronto! Estava alterado o slogan de Itapipoca: cidade, não dos três, mas dos seis climas: praias, serras, sertão, afeto, amizade e criatividade. Foi criada uma atmosfera dialógica, afetiva e com emoção. Enquanto conversávamos íamos compreendendo o outro e a nós mesmos. Estávamos prontos para começarmos o trabalho.
Antes, porém, ao meio-dia, fomos almoçar e saboreamos uma apetitosa comida feita pela Dona Mazé. Depois deitamos nas redes e conversamos um pouco. Era só prá descansar. Voltamos à casa.
O trabalho teve início às 14h15. Presentes: Orlângelo, Joélia, Paulo, Junior, Tamile e eu. Sentir que teria umas “facilidades”, pois o grupo é altamente criativo, performático e com uma sonoridade a flor da pele.
Começamos com um trabalho de iteração e integração do grupo. Críamos uma roda e expandimos ao ponto de nos tocarmos só com os dedos, emitindo sons dessa “dificuldade”. Depois fomos fechando a roda e, abraçados, olhando uns aos outros, brincamos com os pés de maneira lúdica.
Num segundo exercício, formamos grupo de três pessoas sentadas em cadeiras, um ao centro e os outros dois ao lado, falavam, a um sinal, ao ouvido do que estava no centro, ao mesmo tempo, dizendo qualquer coisa. Depois variamos de posições e falaram trechos da peça “O Médico Camponês e a Princesa Engasgada”.
Em um terceiro momento todos deitados no chão, relaxados, respiram bem calmos, se observando. Depois respiram mais profundamente e enviam o ar para alguma parte do corpo. A cada respiração, na expiração emitiam o som de uma vogal, depois vai brincando, emitindo a vogal, com uma parte do corpo, dedão do pé, pé, calcanhar, perna, coxa, região genital, barriga, peito, pescoço, cabeça... Aos poucos começaram a levantar vagarosamente, continuando a expelir o ar com a vogal.
Fizemos, posteriormente, uma rápida exposição sobre os parâmetros quantitativos e qualitativos que são resultados de pesquisas sonoras de Daniel Belquer.
Parâmetros Quantitativos
( + )
FORTE RÁPIDO AGUDO
FORÇA VELOCIDADE REGIÃO
FRACO LENTO GRAVE
( - )
* Criar ou escolher uma frase e brincar com os parâmetros quantitativos, fala normalmente e depois seleciona alguns parâmetros.
Falamos, também, sobre os parâmetros qualitativos:
Parâmetros Qualitativos
Simples: Ressonância - Reverberação - Pausa - Encadeamento - Contorno – Articulação - Acento - Sotaque - Ritmo - Respiração - Repetição |
Complexos: Timbre - Textura - Intenção - Reforço - Contrastes - Complementação - Estranhamento (Variações).
Fizemos comentários sobre os exercícios e falamos, um pouco, sobre o trabalho de Daniel Belquer, paranaense radicado no Rio de Janeiro, que realiza uma extensa pesquisa acerca da utilização do som como elemento essencial na dramaturgia da cena e suas diversas possibilidades de realização.
Conversamos sobre o teatro pós-dramático, denominação formulada pelo crítico e professor de teatro alemão Hans-Thies Lehmann em sua obra Postdramatisches Theater publicada em 1999 na Alemanha.
Segundo Lehmann a cena teatral tem se caracterizado comumente em torno da interpretação de um texto pré-escrito, intangível, que objetiva os conflitos psicológicos e morais entre as personagens. Um esquema narrativo que serve mais ao cinema e a televisão que ao teatro.
Outros autores, principalmente os do teatro do absurdo e Samuel Beckett, entre outros, começam a construir uma dramaturgia fragmentária, assim como o desenvolvimento das tecnologias na cena, na segunda metade do século XX, aparecem e tentam construir uma arte total, transversal, atravessada pelas artes da imagem, do cinema, das artes plásticas, do circo.
Esta nova forma teatral não procura suscitar a adesão do espectador, mas provocar sua percepção ou emoção significativa. Os aspectos fragmentários destes textos, ou destas montagens, permeiam uma reescritura cênica que englobam os aspectos textuais, cenográficos e os problemas que são propostos por um jogo não necessariamente psicológico.
O teatro sempre foi um espelho de seu próprio tempo. No teatro pós-dramático não há mais espaço para, tão somente, o “textocentrismo” (o texto é a razão de tudo). A performance é do tempo presente, o teatro contemporâneo preza pela autoralidade.
Esta nova forma, como compreende Lehmann, possibilita uma redefinição do status do diretor e do dramaturgo, não exigindo uma dependência recíproca ou centralizadora, possibilitando uma reconfiguração e independência recíproca dos papéis dos vários textos da cena, seja a cenografia, a dramaturgia, a direção etc.
Conversamos, ainda, sobre os conceitos da Comédia, da Farsa e do Humor. Por fim, fizemos leituras do texto com ritmos e velocidades diferentes e montamos os objetos cênico-musicais, som e luz para a apresentação.
A apresentação marcada para 20h00 começou às 20h30. Uma platéia não numerosa, mas diversificada e de alta qualidade formada por crianças, jovens, atores, professores, senhores e senhoras que, ao final do trabalho, trocou idéias com o elenco e o diretor indagando sobre o processo realizado e dando as suas impressões e considerações sobre o que tinham visto.
Foi muito bacana o dia e a noite (ela estava apenas começando). Arrumamos tudo na casa e fomos jantar. Fizemos um tour pela cidade e vimos alguns exemplares do patrimônio arquitetônico de Itapipoca. Tomamos cerveja, jogamos sinuca, conversamos com um poeta na praça dos três climas e depois... Bom, depois são outros climas...
Fernando Piancó
Ator, diretor e produtor cultural
Maio de 2011.
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